A revista VICE fez uma matéria alegando que a guerra política – vencida pela direita nestas eleições – é basicamente planejada. Ou seja, alega-se que tudo que é feito nas redes – em direção a pautas ou uma campanha – é fruto de um planejamento central:
O influenciador Paulo, da direita, não concordou com a matéria, afirmando, também no Twitter, o seguinte: “A VICE fez texto sobre memes toscos visualmente da direita… professor da USP garante que é tudo planejado, parte de estratégia gigante de marketing Não conseguem entender até hoje que não é NADA planejado, é tosco pq é gente comum fazendo, não designer, cegueira impressionante”.
Até aqui então temos duas teses indo em duas direções diametralmente opostas:
A tese do planejamento total: esta tese afirma que tudo aquilo que vemos na Internet – em termos de guerra memética, seja no YouTube, no Facebook e principalmente no WhatsApp – é fruto de um planejamento.
A tese da inexistência total de planejamento: esta tese diz que nada aquilo que vemos na guerra política da Internet tem a ver com qualquer tipo de planejamento.
Ocorre que a verdade não está em nenhuma das teses, mas na coluna do meio. Aquilo que vemos nas redes sociais nasce principalmente de atitudes espontâneas, mas vão tomando corpo – pouco a pouco – a partir de ações planejadas e centralizadas, em uma cadeia de influência. No maior nível as decisões são completamente planejadas. Mas nos menores níveis, as decisões são espontâneas.
A cultura da convergência
Para entender esse fenômeno, é preciso compreender aquilo que se chama de “cultura da convergência”, tema abordado pelo autor Henry Jenkins em obras como “A Cultura da Convergência” e “A Cultura da Conexão”. Outro autor que pode nos ajudar é Clay Shirky, que escreveu “Lá vem Todo Mundo” e “A Cultura da Participação”. Por fim, outro autor recomendável é James Surowiecki, que escreveu “A Sabedoria da Multidões”.
Vamos a um breve apanhado do que pode ser entendido de uma sumarização das ideias desses autores.
Hoje em dia, as redes sociais deram mais voz às pessoas, mais do que no passado. O conceito de “prova social”, antes aplicado nas relações cotidianas, se moveu para explicar como alguém se sente “aprovado” nas redes sociais. O ser humano automaticamente quer pertencer a grupos, pois isso está codificado em seu hardware como um mecanismo de sobrevivência. Como teorizada por Jenkins, a cultura fã (dos “fandoms”) trouxe muita gente produzindo conteúdo de graça, meramente pela sensação de pertencimento.
A cultura Star Trek e os fãs de Matrix, produzindo vídeos com as temáticas que gostam pela Internet, são as principalmente manifestações desse fenômeno estudadas pelo autor. Obviamente serve para empresas cada vez mais conectadas, empresas de mídia e, é claro, seria utilizado por políticos. A campanha de Barack Obama foi o primeiro grande “case” de sucesso do uso da cultura fã.
Mas como isso funciona? Bem, não é possível que isso funcione de maneira planejada, pois, tal como mostra Clay Shirky, toda a espontaneidade natural se perderia. As pessoas que lutam por pertencimento (agindo espontaneamente) não lutariam da mesma maneira se tudo fosse baseado em incentivos financeiros, até porque não iria ter grana suficiente para todo mundo. Alguém que tem um canal com milhões de pessoas ganharia dinheiro, mas aquele que tem apenas 100 seguidores ficaria sem nada. Qual o incentivo para produzir assim? Logo, a espontaneidade é uma ferramenta fundamental desse processo.
Surowiecki demonstra que a agregação de informação em grupos resulta em decisões quase sempre melhores do que as que poderiam ser feitas individualmente, isso porque, em grupos fechados, existe o “pensamento de grupo”, viés da mente humana que limita as melhores decisões. Nesses grupos fechados e hierárquicos, muitas pessoas tem medo de dar suas ideias, por medo daqueles que possuem mais poder. Por isso, a criatividade vai pro buraco. Já os grupos mais “abertos” dão vazão à criatividade plena, além de muita motivação para produzir.
Juntando espontaneidade com planejamento
Mas como fazer tudo isso funcionar numa direção específica diante de tanta necessidade por espontaneidade como driver da criatividade? Aí é que entram as cadeias de influência.
Novamente aqui temos que compreender a natureza humana pela ótica da dinâmica social: as pessoas se motivam por uma relação de motivação versus recompensa. Pense numa cadeia básica, com vários níveis. No primeiro nível, estão aqueles que falam para um grupo de amigos. No segundo nível, estão os que falam para um público amplo. No terceiro nível, estão aqueles que falam para um público gigantesco, geralmente tendo alguns dos influenciadores anteriores orbitando em torno de si. No quarto nível, temos aqueles influenciadores – ocultos ou públicos – que conectam todos os outros níveis, ligados às estruturas partidárias (ou a uma empresa, ou um jornal, o que seja).
Quem está no primeiro nível, busca meramente a aprovação social. A medida que alguém vai subindo de nível, ele vai adquirindo espaço perante os que estão em um nível superior. Mas nestes níveis, falamos de interesses financeiros (ganhar dinheiro com anúncios, pautar temas, vender influência). Nem todos estão com os mesmos interesses. Alguns podem buscar apenas o interesse de ganhar dinheiro com o que faz. Se não existir nada de ilegal, não há problema algum. São os interesses humanos, independentemente do setor.
Lá no quarto nível, os interesses a serem atendidos são bem diferentes. Falamos de cargos e espaços de poder. Novamente, isso ocorre em todos os espectros políticos. Então não é uma coisa de “esquerda ou direita” ou de “neoconservadores ou liberais”. Há quem controle melhor essa dinâmica e há aqueles que são incompetentes nisso. O aprendizado é contínuo.
Para que a coisa funcione, aqueles no menor nível hierárquico não podem até suspeitar que são parte de uma engrenagem, mas não podem saber a direção de suas ações, pois sua atuação é espontânea e precisa continuar assim. Quanto mais subimos de nível, menor a espontaneidade. Logo, não temos uma reunião a salas fechadas envolvendo gente de todos os níveis da hierarquia para falar da “direção da campanha” ou coisa do tipo. Quem quer que estivesse no topo da cadeia e fizesse isso perderia o aspecto de espontaneidade. Não demoraria para alguém sair vazando informações.
Assim, a estrutura só pode operar em camadas de controle, sendo que no primeiro nível existe a espontaneidade total, enquanto que no nível mais alto temos o planejamento total. Esse planejamento não pode, de forma alguma, ditar formalmente todo o conteúdo a ser produzido nos níveis mais baixos da cadeia. Em vez disso, são utilizados recursos que impossibilitem a percepção do controle. Alguns deles são: (1) cadeias de solidariedade, (2) estrutura de indicação mútua, (3) exclusão de divergentes.
Muitas vezes grupos que atuam no nível 2 e 3 da cadeia podem estar, em algum momento, desconectados do nível 4. As vezes grupos nos níveis 2 e 3 podem estar disputando espaço para conseguirem contato direto e alinhamento com aqueles do nível 4. Por isso, se alguém teve sua reputação assassinada por um integrante do nível 2, isso não significa que essa atitude seja automaticamente aprovada por aqueles que estão no nível 4. Pode acontecer de esses grupos estarem disputando espaço para dizer, aos que estão no nível 4: “Ei, eu te represento, e eles não”. Então, não devemos ser precipitados e atribuir a uma campanha uma responsabilidade que pode estar apenas em um dos setores de militância (geralmente nos níveis 2 e 3).
As cadeias de solidariedade servem para dar apoio para os demais integrantes da “rede”. Ou seja, se alguém é banido, os demais saem em apoio. A solidariedade existe em vários aspectos. As estruturas de indicação mútua são muito bem coordenadas pelo nível 4, pois define quem são aqueles que recebem indicações dos demais. Se você viu, durante a campanha, canais duplicando, triplicando ou até quadruplicando de tamanho, isso se deve às estruturas de indicação mútua.
Esses elementos – (1) cadeias de solidariedade, (2) estrutura de indicação mútua, (3) exclusão dos divergentes – não são todos. Mesmo assim, já nos são úteis para clarear o funcionamento da exploração do mecanismo humano inerente de “busca de aprovação social” (ou seja, prova social). Já no primeiro nível, as pessoas tem medo de ficar fora das manadas. Elas precisam de aprovação social.
Muitas delas percebem, subconscientemente, qual é o conteúdo “aprovado” pelos níveis superiores da cadeia. Eles vão entendendo, aos poucos, o que vai gerar likes e retuítes e o que será excluído. Assim, elas agirão espontaneamente e motivadas a produzir conteúdo (sem receber dinheiro em troca), mas seu subconsciente já “entendeu” as regras do jogo.
Desta forma, fica claro como essas estruturas – utilizadas inicialmente na campanha de Barack Obama, e depois aprimoradas pela direita no Brexit e na campanha de Trump – não podem, de jeito algum perder a espontaneidade, mas necessariamente tomarão alguma direção (e serão planejadas principalmente nos níveis 3 e 4) em um dado momento. Seria impossível que esse direcionamento deixasse de existir, até pela própria natureza humana.
Sem esse tipo de controle, apenas no nível mais alto, não existiria o conceito de “sabedoria das multidões”, obviamente.
Conclusão
As duas teorias antagônicas – uma dizendo que “há planejamento total das ações virtuais” e outra dizendo que “não há nenhum planejamento nas ações virtuais” – são incompletas. Podemos dizer que a primeira teoria é quase como um criacionismo, enquanto a segunda estaria próxima de um darwinismo.
No criacionismo, tudo tem uma origem clara, criada por um propósito. No darwinismo, não há nenhum propósito. Enquanto na biologia a teoria darwinista é a mais válida, sua abordagem para o mundo das ideias – a memética, de Richard Dawkins – é incompleta. Há uma possibilidade de controle do fluxo de ideias, enquanto a própria natureza humana fará essa possibilidade se manifestar. Sem isso, não existiriam resultados concretos.
Se a teoria do design inteligente não serve para a biologia, ela seria útil se fosse adaptada para o mercado de ideias direcionado para empresas, políticos e órgãos de mídia. Assim é possível explorar a espontaneidade das pessoas e planejar a direção do fluxo dessas informações atendendo a interesses bem sólidos, principalmente a partir do entendimento da busca humana pela “prova social”.
Em suma, você tende estar agindo espontaneamente, mas ao mesmo tempo fazendo parte de uma ação coordenada. Logo, a tese de que “tudo que se vê na Internet é espontâneo” não serve, principalmente porque os mecanismos de controle para interferir na seleção das ideias incentivadas ou excluídas já foram usados por aqueles nos maiores níveis hierárquicos e, é claro, sem que você tenha ciência disso.